01 janeiro 2007

Leituras

As velas ardem até ao fim

Acabadinho de ler este magnífico romance do escritor húngaro Sándor Márai. Trata-se de uma prosa profunda e sufocante que maravilha pela sua riqueza lexical e pela exploração da gramática de forma bastante ampla. Talvez por isso seja igualmente de reconhecer a importância da tradução de Mária Magdolna Demeter.
É um livro que impressionará mais pelo estilo do que pelo conteúdo. Aborda uma história de amizade platónica entre dois homens, daquelas coisas sobre as quais se costuma dizer: "só nos filmes" ou, neste caso e com mais propriedade, "só nos livros".
Para quem, como eu, gosta da escrita pela escrita, recomendo vivamente.
O meu exemplar pertence à 11ª edição, o que significará alguma coisa.
Deixo-vos três passagens da obra.

É a maior tragédia, com que o destino pode castigar o homem. O desejo de ser outro, diferente daquilo que somos: não pode arder um desejo mais doloroso no coração humano. Porque não é possível suportar a vida de outra maneira, apenas sabendo que nos conformamos com aquilo que significamos para nós próprios e para o mundo. Temos de nos conformar com aquilo que somos e de ter consciência, quando nos conformamos, de que em troca dessa sabedoria, não recebemos elogios da vida, não nos põem no peito nenhuma condecoração por sabermos e aceitarmos que somos vaidosos ou egoístas, carecas e barrigudos - não, temos de saber que por nada disso recebemos recompensas, nem louvores. Temos de suportar, o segredo é isso. Temos de suportar o nosso carácter, o nosso temperamento, já que os seus defeitos, egoísmos e avidez, não os mudam nem a experiência, nem a compreensão. Temos de suportar que os nossos desejos não tenham plena repercussão no mundo. Temos de suportar que as pessoas que amamos, não nos amem, ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, e o que é o mais difícil entre todas as tarefas humanas, temos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa.
(...)
Sabes, uma pessoa gosta de devolver aos deuses algo da sua felicidade. Porque os deuses são invejosos, como se sabe, e quando oferecem um ano de felicidade a um mortal comum, anotam logo essa dívida e no fim da vida reclamam-na com juros de usura.
(...)
O maior segredo e a maior dádiva da vida, quando duas pessoas "semelhantes" se encontram. Isso é tão raro, como se a natureza impedisse com força e astúcia essa harmonia - talvez porque para a criação do mundo e para a renovação da vida necessita da tensão que se gera entre as pessoas que se procuram eternamente, mas que têm intenções e ritmos de vida opostos. Sabes, corrente alterna... onde quer que olhes, lá está essa troca de forças positivas e negativas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ok... Fiquei com água na boca. Vou buscar um babete, e de caminho, ver se arranjo o livro!

:-)

 

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