30 novembro 2010

Sons


Mudo
Perfume

Velha em paragem de autocarro

Sentada, de olhar perdido no vazio, aconchega no colo a carteira e o chapéu de chuva castanhos.
Leva uma mão à boca e corre todos os dedos em demanda de uma unha para roer. Desiste, exalando um suspiro de frustração que sai enrolado ao pescoço de uma baforada de ar quente.
Consulta o relógio.
Franzindo a tez, apura dois olhos míopes e procura, no fundo da rua, o autocarro que não chega.
Levanta a cabeça. Sorri...
Diverte-se com as nuvens que trabalham o azul do céu como uma renda de bilros. A lua, em quarto minguante, espreita lá de longe como que a dizer "gosto muito de ti!".
Pousando o queixo na palma de uma mão, cotovelo apoiado no joelho, pensa nos filhos que não lhe telefonam nem a visitam senão em ocasiões festivas. Procura um raciocínio que a console... Não estar perto de determinadas pessoas não significa que não as amemos. Por vezes, essa distância, esse estar apartado, faz com que as amemos ainda mais.
É isso!... Só pode ser isso!... O contrário seria impensável.
Interrompida pelo som familiar do transporte que chega, levanta-se do banco da paragem esboçando um esgar de dor. É só mais um pouco. Daqui a nada estará sentada no banco do autocarro, à janela, de olhar uma vez mais perdido no vazio.

Tenho saudades deste homem



Fernando Assis Pacheco
01.02.1937/30.11.1995



Variações sobre um fado

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.

"Que me importa que batam à porta...
"Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.
Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
se lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

in Cuidar dos Vivos

29 novembro 2010

Sons (de segunda-feira)


Speaking of Happiness
Gloria Lynne

[hoje apeteceu-me um oldie mais dengoso... Quero ir p'á (minha) ilha!!!!!!!!!!!!!!]

26 novembro 2010

Sons (por que será?)


Rock 'N' Roll Star
Oasis

Os "ers" e os "res" do nosso (des)contentamento.

Hoje fui deixar o meu xotas à escola e depois fui até ao Meco para matar o vício da pesca. Foi daquelas coisas que se faz em desespero de causa: o mar não estava minimamente em condições e a água era lusa, de um verde esmeralda cristalino.
Depois de um "para trás e para a frente" de cerca de três horas, achei por bem dar a campanha por terminada, até porque já contava com dois braços molhados e enregelados até aos cotovelos.
De regresso a casa e a um duche de água a escaldar, fiz-me à estrada.
Parei num stop no cruzamento da Aldeia do Meco para o Cabo Espichel e Alfarim. Como manda o código, abri bem a pestana em todas as direcções. Acto contínuo, dou de trombas com este magnífico cartaz que achei merecedor de uma foto.


Não foi bem o "assoalhdas" que me ficou na retina. O que me traumatizou verdadeiramente foi o "premuta-se".
Ora "pre"+"muta-se", seria um "antes" de "mutar"?
Se "mutar" significa mudar, será que o construtor pertendeu afirmar que está perparado e disponível para alterar a moradia de modo a encaixar prefeitamente nas perferências do cliente?
Estas mensagens subliminares não são preceptíveis assim a modos que logo à primeira. Para dizer a verdade, só me aprecebi da coisa enquanto esperava pelo almoço de entercosto guerlhado, entertido que estava na persença duma carzberg e duns termoços.
Esta ideia martelou-me o encéfalo de modo presistente até que precebi:
- Tenho que me matricular e ferquentar as novas oportunidades de modo a aprefeiçoar-me.
Se assim não for, estarei percocemente condenado.

25 novembro 2010

Sons


Dreaming with a broken heart
John Mayer

O jardim das emoções suspensas

Manhã.
A neblina envolve o ápice dos castanheiros.
Tudo é difuso e misterioso.
A natureza tem sempre o seu quê de indecifrável. Uma linguagem própria, inacessível, admiravelmente impenetrável.
Um salgueiro dispara em múltiplas direcções, como um jorro de lágrimas fotografado a baixa velocidade.
Bunganvílias pendem indiscretas, contorcendo-se no ar. O que não terão já presenciado?
As heras trepam os troncos, envolvendo-os como amantes enlaçados.
Bancos de jardim; canteiros de amores-perfeitos e imperfeitos. Afinal de contas, o que são estes? O que são aqueles? Ambos selvagens como as aroeiras que espreitam.
Um raio de sol desponta por entre o cinzento carregado das nuvens e, de repente, do chão germina uma imensa e labiríntica sombra. Sombra de encontros e desencontros, de caminhos e descaminhos.
O azul e o rosa das hortênsias ganham outra profundidade, um novo fôlego.
Somos muito pouco - se é que somos alguma coisa - aqui, esta manhã, neste jardim.

20 novembro 2010

19 novembro 2010

Uma conversa banal

- Ó estafermóide... o que tás a fazer assentado na cadeira?
- Então não me mandastes assentar?
- Ráis'partam a nha vida! Era assentar no papel a lista das compras que dssestes qu'ias fazer...
- Atão vê lá se tesplicas p'kassim num pssebo.
- Alevanta-te mediatamente e faz-t'à vidoca.
- Fónix!
- Que foi agora?
- Entropecei no gaspacho?
- No quê?
- No gaspacho aqui da porta.
- No é gaspacho meu bronco. É capacho.
- É assim: já me tou quaise a passar cuntigo. Baixa lá a bola qu'o garda-redes é anão. P'qué que não vais tu ao spemercado? Tomá lá cem êros e destroca.
- Mas tu falastes qu'ias tu... há-des cá vir dzer paír lá abaixo à Ti Gracinda cumprar mines qu'eu conto-te uma estória...
- Ó môr!... Tu é qu'és uma vdadeira persunal pessas coisas: és mais grande qu'eu e chegas às parteleiras mais altas onde tão os pitaxios e os mindoins. Inclusiver tás sempe mais à coca com a fractura, pa ver s'as gajas num s'inganam...
- Tu num podes cmer pitaxios. É uma faca de dois legumes. Tanto pode cair bem como mal. Depois é só dores de estôgamo e toca a mamar aspergics. Olha qu'eu mando-te mediatamente p'hospital e ficas lá cum a sanha numaro treuze mil, no meio dos toxicoindependentes e daquela gente cheia de orticárias, patites B, rabeulas, tromboclubites e outras doenças avenéreas.
- Ó pá. Num sejas inxorbitante. E outa coisa: cando chegares c'as compras, num poises o saco das mines em cima do capom do mcedes p'qu'aquece as garrafas e mancha a pintura. Depois lá tem aqui o moiro qu'ir outa vez c'o carro po stander.
- Vai-te catar!
- Só se te sentares nos artelhos e pdires cum munto amor.

Sons

Hoje sinto-me (escalavrado, mas) groovy.


I'd like to
Corinne Bailey Ray

Auto-censura

Não me apeteceu guardar o "Valha-nos Jesus" e, vai daí, apaguei-o.
O lápis azul atacou pela primeira vez neste blogue. Hmmmm... curioso precedente. Espero que seja uma vez sem exemplo.

16 novembro 2010

Eu e a Cidade: AO MAIS ALTO NÍVEL

Eu e a Cidade: AO MAIS ALTO NÍVEL: "Hoje a minha amiga Paula, que está sempre muito atenta, mandou-me um email acerca da “febre do mestrado” que tem assolado o nosso país nos ..."

15 novembro 2010

O que será que será?...

Não se passa nada de extraordinário a não ser o facto de me encontrar muito cansado. Mas nem por isso tenho descurado o meu caderno de notas.
Voltarei!

10 novembro 2010

Desafio-vos a não rir.



Peço desculpa por algumas calinadas mas a legendagem não é da minha responsabilidade.
Heil Hitler!

09 novembro 2010

Enganou-se no comprimido.



Será que o miúdo se enganou no comprimido e foi ao frasco do amobarbital sódico? De repente deu-lhe para este chorrilho de verdades...
Só pode!...

08 novembro 2010

Praia da Fonte da Telha - fotos.

Há cerca de um mês (re)descobri a minha velhinha Nikon analógica encostada a um canto. Vasculhei o estojo e dei com dois rolos de fotografia fora de prazo. Um cor e um pb.
A máquina estava sem pilhas...
A tarde estava sorridente e decidi fazer mais uma das minhas caminhadas no baixa-mar.
Fotografei, mandei revelar as películas e passar para DVD. Nunca mais me lembrei de as ir levantar... até hoje.
Cá vão algumas.












É o fim do mundo

Acabo de ouvir (em ante-estreia radiofónica) o Carlos do Carmo a cantar You make me feel so young.
Por amor da santa. Se eu chegar a velho e cair em tamanha falta de bom senso, chamem o INEM, metam-me num espartilho de varetas e internem-me no Júlio de Matos.
Ó homem: deixe-se estar sossegado a cantar fado pois o seu estilo, goste-se ou não (eu gosto), é inconfundível.


Fado da saudade
Carlos do Carmo

07 novembro 2010

Exposição ao Ministro da Agricultura.

Na passada sexta-feira ao final da tarde tive que me deslocar ao Algarve.
Ia com pressa.
Sem combustível para realizar os 600 kms da viagem, parei para abastecer. Introduzi mal a mangueira no bocal do depósito e um jorro de gasóleo ensopou-me a perna esquerda das calças. Diz que isto de introduzir incorrectamente e de molhar as calças é coisa normal quando se vai para velho.
Roguei umas pragas mas lá segui viagem.
Algum tempo depois o cheiro do gasóleo tornou-se insuportável. A solução da janela aberta ajudou a minimizar o pivete mas o frio era igualmente proibitivo. Resolvi voltar a parar noutra estação de serviço e esfregar as calças com água para ver se o problema se resolvia. Sem sucesso.
Entre Alcácer do Sal e Grândola voltei a abrir a janela e a coisa resolveu-se mas não da forma esperada. É que um bafo de cheiro a estrume de vaca invadiu-me o carro de um modo tão triunfal quanto a entrada dos nazis em Paris durante a II Guerra Mundial.
Em desespero, lembrei-me que trazia a mochila da pesca na mala do carro. Dentro dela anda sempre um par de calças impermeáveis.
Nova paragem em Almodôvar para trocar de indumentária. As calças impermeáveis azuis ficaram-me a matar com a camisa de xadrez que levava vestida.
Pelo acima exposto pergunto-lhe, Senhor Ministro:
- Um moçoilo assim a modos como eu, vestido de calças impermeáveis e camisa de xadrez, com as botas a cheirar a gasóleo e o carro a bosta de vaca, é elegível para obtenção de um subsídio de jovem agricultor?
Se for esse o caso, agradecia um contacto por parte dos serviços competentes.
De V. Exa., atentamente.

Sonhos amargos - doces realidades.

São múltiplas as realidades que povoam a minha existência. As velhas e as novas. Entre aquelas, as que carregam o deve e o haver do passado. Entre estas, as que habitam os meus sonhos desde que, recentemente, dei em deles me lembrar quando acolho cada um dos múltiplos despertares que me ocupam a noite.
Não sei - não quero saber- se os sonhos têm algum significado.
Sonhei contigo em Paris, sonhei contigo algures por cá. Sonhei que nem em sonhos demos certo.
Acordei exausto para mais um dia sem o sal da vida.
Regrido no tempo, em desespero, procurando um qualquer ponto de recomeço.
Esta semana, durante uma das minhas sessões de Filosofia para (ou com) Crianças, os meninos escolheram falar sobre o que é um amigo.
Durante o nosso diálogo, e perante alguma indisciplina repentina, achei que seria uma boa altura para fazer um ponto de ordem à sessão através de um resumo da linha de raciocínio que vinha resultando de múltiplas contribuições. Um menino havia dito:
- Os amigos são meninos e meninas como nós.
Ao que lhe perguntei:
- E os teus bonecos? São teus amigos?
Respondeu:
-Não! Os amigos têm que ser pessoas.
Voltei à carga:
- E os meninos que têm um cão? Acham que o cão não é amigo?
Responderam todos:
- Siiiiiiiiimmmm!
E eu:
- Então... mas o cão não é uma pessoa!...
Responderam-me:
- Mas o cão é a sério e os bonecos são a brincar.
Perguntei:
- E será que todos os amigos a sério têm sentimentos? Isto é (expliquei) o cão, por exemplo, mostra alegria ou tristeza?
A maioria respondeu:
- Siiiiiiiiim!
Voltei à carga:
- E os bonecos? Não riem nem choram?
Responderam alguns:
- Os que têm pilhas choram e falam. Mas não são a sério.
O meu resumo/pergunta - nesse momento - fazia-se do seguinte modo:
- Em vosso entender, um amigo tem que ser real, independentemente de ser pessoa ou animal. Certo?
Uma menina levantou o braço pedindo para responder. Dei-lhe a palavra.
- Eu acho que os bonecos são a brincar mas também são nossos amigos. E há outros amigos que não são a sério mas também não são a brincar, e que têm sentimentos.
E eu (atrapalhado):
- Achas que sim? Dá lá um exemplo.
E ela (muito expedita):
- Os amigos todos que eu tenho na minha cabeça! Também riem comigo e às vezes choram quando eu ralho com eles.

Julgo ser pertinente acrescentar que estava a trabalhar com crianças do 1º ano (1ª classe).
O meu pai ainda esta semana me havia perguntado se este meu trabalho de voluntariado junto de dez turmas (do pré-escolar ao 4º ano) de uma escola básica iria ser pago. Respondi-lhe negativamente. Estava enganado. Há coisas que não têm preço.

E foi este o meu ponto de recomeço desta noite.
Não estou completamente desprovido de esperança. Aqui e ali há sempre um centelha capaz de nos fazer levantar do chão. E esse "aqui e ali" pode muito bem ser o raciocínio inequívoco de uma criança.


Soul Provider
Grand Tourism

03 novembro 2010

A minha velhice em versão Almodovar

- Amor?
- O que foi? (Rái´s parta o velho!...)
- Trazes-me o saquinho de água quente? Doem-me as mazeuas todas até à espinau medua.
- Levanta o cu da poltrona e vai lá tu buscá-lo!
- Mas... amorzinho... Está a dar o Benfica na teuevisão.
- Já se te acabou o "Corega"?
- Porquê?
- É que tens a dentadura solta e estás outra vez a comer os "éles": "teuevisão"; "mazeuas"; "espinau"; "medua"...
- Vá uá paixão. Já não ganhamos o campeonato há 25 anos...
- Estou a "uimpar" a "uouça"... (riso escarninho)
- Isso... goza-me. Bruxa!!! Quando te vieres cá encostar à noite, mando-te ir dormir com a vassoura.
- Olha... essa p'lo menos ainda tem pau.
- Cabresta!
- Toma lá a porcaria do saco. Mas não te acomodes muito porque quando acabar o jogo tens que ir comigo ao Colombo.
- Ao Cuombo??? A mulher endoidou. E eu uá vou a estas horas pa Uisboa?
- Tenho que ir lá comprar uma mala que vi a semana passada.
- E para que queres a maua? Vais de viagem?
- Pouco barulho que incomodas os vizinhos. Prepara a carteira e não bufes muito senão distraio-me nas garrafas e tempero-te a salada com "Super Pop Limão".
- Não... ai não... queres ver?... ai... ai... isto não está a acontecer. O Benfica a perder com o Estreua da Amadora... Eu morro aqui sentado.
- Essa sorte não tenho eu!...
- E que história é essa de "prepara a carteira"? A maua é p'ra mim? Vai à uata onde escondes as notas graúdas.
-Nem pensar. Sabes muito bem para o que é esse dinheiro!
- Pfffffff! Uma uipoaspiração. Vê mas é se abres a pestana. Para te sugar essa gordura toda tinhas que mandar vir uma grua para te suspender e três aspiradores dos que se usam em prospecções subaquáticas.
- Parabéns! Acabas de assegurar duas semanas sem almoço. Velho tinhoso!
- Pois sim... e eu rauado com isso.
- Eu vou sozinha ao Colombo. Assim como assim, mais vale ser eu a levar o carro porque tu - meu traste imprestável - já nem conduzir sabes.
- Achas?
- Eu não acho. Eu tenho a certeza! Ainda esta manhã, a figura que fizeste ao arrancar com o carro aos solavancos... a vizinhança toda a rir...
- A rir mas era de ti.
- De mim? Como de mim?
- Do gatafunho de baton que fizeste da boca à testa quando eu arranquei com o carro. Quem te manda pintar os uábios com o carro em andamento?
- Não me digas que foi de propósito para eu me esborratar toda?
- Honestamente?
- Sim... responde.
- Bem... para dizer a verdade a ideia era a de ver se te conseguia fazer bater com a testa no pára-brisas. Mas assim também serviu!
- Piolhoso!
- Também te adoro!
- Ranhoso!
- Amo-te!
- Múmia decrépita!
- Vai tu!

02 novembro 2010

A culpa não será do photoshop

Ainda a caminhada à Peninha. Eu e o meu grande amigo Jorge.
Lá íamos nós palmilhando tranquilamente os caminhos florestais que nos conduziriam ao destino pretendido, quando se misturou gente de um outro grupo de caminheiros.
Mesmo à nossa frente, vá-se lá perceber por que artes, (a floresta tem destas coisas misteriosas), interpôs-se uma fulana que, apenas para começar, nos colocava imediatamente perante o seguinte dilema: como é que esta personagem se conseguiu meter dentro das calças?
Se as ditas cujas, pretas, de sarja, pudessem comunicar, fá-lo-iam num misto de grito/gemido/carpido capaz de fazer chorar os eucaliptos que nos delimitavam a marcha.
Não fossem as conversas de circunstância dentro do grupo e, tenho a certeza absoluta, ouvir-se-ia o ranger das costuras.
O (des)interessante é que a rapariga quase não tinha peito. O que lhe faltava no primeiro andar sobrava no rés-do-chão.
As nádegas (meu Deus... aqueles colossais nadegueiros) oprimiam de tal forma o tecido que, ao criar um conjunto incontável de pregas, formavam dois verdadeiros blocos de massa folhada.
Um pouco assustado com a possibilidade de alguma daquelas tachas que decoram os bolsos poder, de repente e sem qualquer aviso prévio, sair disparada na nossa direcção (não exagero se vos disser que o impacto entre os olhos de um tal projéctil, à velocidade com que seria expelido, seria motivo para uma morte fulminante), sugeri ao Jorge que mudássemos de posição na comitiva. Respondeu-me "que não!". Na sua opinião tudo aquilo não passava de um simples fenómeno de transferência de massas e que eu era demasiado alarmista, e coiso e tal e tal e coiso...
Lá anuí em continuar, mas sempre a rezar aos meus anjos da guarda.
Pelo menos numa coisa eu e o Jorge estivemos de acordo: era um problema de massa (para mim... folhada).
Chegados à porta do santuário, para meu deleite e olhar invejoso dos restantes presentes, o Jorge fez saltar da sua cartola de primeiros-socorros duas garrafas de Super-Bock que bebericámos com requintes de malvadez.
Enquanto dois elementos do tal outro grupo trocavam impressões sobre um qualquer curso de Photoshop, eis que chega Miss massa folhada e, dirigindo-se a um deles, diz:
- Môr... depois quero que me ponhas linda em todas as fotografias.
Resposta pronta:
- Queres umas mamas maiores e/ou um rabo mais pequeno?
Abrenúncio!!!
Visivelmente incomodada com a apresentação pública que o marido (?) havia feito sobre o deve e o haver da mulher, lançou-lhe um olhar fulminante, carregado de promessas de longa e penosa austeridade sexual.
- Eu disse "bonita". Não me referi a mexer em mais nada porque eu sou booooaaaaa, tá?
O rapaz lá foi encolhendo os ombros, mal dizendo a opção pelo curso básico de Photoshop. Devia, isso sim, ter tirado uma Licenciatura em Artes gráficas ou, melhor ainda, Cirurgia Plástica.
Escondemos as gargalhadas pois ninguém de bom-senso se ri na cara de uma mulher com um bastão de alumínio na mão.
Uma coisa é certa: a pretexto de um atacador mal apertado, na descida fiquei um pouco mais para trás.
Não fosse o capeta tecê-las!...

01 novembro 2010

Uma esquina de passeio.

Uma esquina de passeio como tantas outras...
O lancil corre em cotovelo, carregando as lordoses impostas pelo pisar e repisar constantes de pneus de automóveis mal estacionados.
Um ecoponto saturado, imundo, mantém alguma dignidade graças à lâmpada fundida de um candeeiro de rua que desistiu de iluminar.
A tristeza paira dominadora, saturando o ar, exibindo o seu véu obscuro de forma magestática.
Aqui, um televisor de cinescópio, esventrado, resignado à sua obsolescência e à ingratidão de quem dele disfrutou.
Ali, um novelo indecifrável de camisolas de malha e latas de conserva, numa promiscuidade de fibras e gorduras dificilmente suportáveis.
Acolá, um pacote de cereais acolhe agora uma fralda de criança.
Uma boneca desmembrada jaz de costas na calçada, contemplando as estrelas. A seu lado, mas irremediavelmente apartado, um braço de borracha, a palma da mão virada para o céu, os dedos entreabertos, suplicando o abraço e o colo de meninas de outrora, agora feitas mulheres.
Um reposteiro carmim repousa perigosamente entre o passeio e o asfalto. Exibe com orgulho os berloques que rematam o debruado de um dourado que perdeu o fulgor. Sob a sua cobertura, um rafeiro sem brilho nos olhos prepara-se para a noite, sacundindo sarna e pulgas uma última vez antes de se enroscar sobre um chão molhado, frio, inóspito, tal como a vida para a qual foi parido sem voto na matéria.
As luzes de um carro que passa descobrem duas órbitas brilhantes num vulto que se encontra encostado ao vidrão. Um gato. Ali está... imóvel, impávido. Não se percebe se vencido e conformado, se expectante e determinado.
Uma rajada de vento levanta no ar uma espiral de maus-cheiros, sacos de plástico, papéis com figuras - pedaços de um baralho que esta noite joga as suas últimas cartadas.
Estou confuso!
O vento troca-me as ideias com a mesma facilidade com que baralha as cartas que se contorcem sobre si, enrolando pedaços da noite.
Levanto-me dos degraus de mármore em que me encontrava sentado, aspirando mais uma nuvem de fumo de um cigarro que desejei mas não fumei.
Rezo por alguma paz, peço luz na minha vida...
Afinal de contas só Deus sabe aquilo que nos está reservado... ao virar de mais uma esquina.

Sons


Walk on
U2

Ironicamente lixo

Por vezes não consigo rever-me noutra imagem que não a de lixo. Não no sentido de lixo limite, sem apelo nem agravo, sem outra esperança possível a não ser a ser a da sua  própria impossibilidade. Sinto-me como lixo deitado fora com displicência, de forma precipitada. Lixo resultado de subaproveitamento.
Sou lixo com uma licenciantura, duas pós-graduações e um mestrado. O que importa isso do exercício contínuo do intelecto. O que importa enveredar por múltiplas áreas disciplinares? O que interessa frequentar cursos de Mandarim, palestras de Antropologia e Sociologia? De que valem vinte anos de experiência profissional e ser autor de projectos pioneiros na área da museologia e da museografia? De que me serviu publicar trabalhos?
Tudo ponderado eu sei bem qual é a resposta. Serviu-me para ser quem sou. Para andar na rua de cabeça erguida. Para honrar aqueles a quem devo o "lixo" que sou e a quem, apenas de forma muito pálida, faço justiça.
Os meus pais, os meus avós, os meus tios João e Carlos. Nunca - MAS NUNCA - serei lixo suficiente para fazer parte de semelhante panteão.
Eu sou o que sou e se não estiverem contentes tentem reciclar-me. Experimentem só!...


Trash
Suede
 

is where my documents live!