Quando as proezas científicas se sucedem a um ritmo imparável, quando um xeique dos Emirados Árabes Unidos manda construir um sistema de canais que inscreve o seu nome na areia, numa dimensão que torna a palavra legível a partir do espaço e, ao mesmo tempo, existem pessoas a morrer de fome e de sede, algo vai muito mal no coração dos homens.
Não me apetece discutir aqui a origem das assimetrias nem, mais facilmente, a origem do mal. Interessa-me, isso sim, falar das terríveis imagens que nos chegam diariamente. Não falo sequer dos mortos. Felizes os mortos. Abençoados todos os mortos. Falo de uma mãe de olhar vazio, perdido no nada, segurando nos braços um filho moribundo.
Quando a Humanidade continua a permitir-se deixar uma mãe com um filho nos braços perder o seu propósito na vida, quando a Humanidade autoriza tamanho paradoxo e permanece atida a respostas pontuais, então é tempo de nos começarmos a interrogar sobre as nossas prioridades, sobre o nosso rumo.
A Cruz Vermelha e outras ONG's intervêm sobre as consequências, num esforço demasiadas vezes inglório.
Eu falo em intervir sobre as causas.
Se pensarmos que esta região designada como o "corno de África" apenas se encontra separada da Arábia Saudita e do Iémen pelo Mar Vermelho e pelo golfo de Aden no oceano Índico, mais facilmente entendemos esta ironia quase doentia que coloca vis-à-vis os que têm tudo e os que nada têm.
Recordo amiúde a figura de Ali Farka Touré, musico maliano, que repetia incessantemente a frase Le miel n'est jamais bon dans une seule bouche. Vivendo de acordo com esse princípio de partilha entre os mais e os menos afortunados, Ali empregava as receitas resultantes da venda dos seus discos a nível mundial, na melhoria das condições de vida da população de Niafunké, pequena localidade de que era Maire.
Não caio no recurso de puxar a questão para argumentos de ordem religiosa. Nesta nossa contemporaneidade facilmente reconhecemos a urgência dos ensinamentos de Cristo. Ali Farka Touré era muçulmano... O que interessa isso?
Não quero, de igual modo, subtrair importância ao contributo que os diversos credos poderiam dar em matéria de tolerância e de solidariedade, ao invés de se digladiarem quase universalmente.
Açoka, célebre rei budista da Índia que renunciou a qualquer conquista militar depois de ter tomado consciência dos horrores da guerra, mandou gravar numa rocha a seguinte inscrição: "Não devemos honrar apenas a nossa religião condenando as outras, mas honrar também as outras religiões por um ou outro motivo. Agindo deste modo, ajudamos a engrandecer a nossa religião e prestamos serviço às outras. Agindo de outro modo, cavamos a sepultura da nossa religião e prejudicamos as outras." (O Rei, o Sábio e o Bobo - Shafique Keshavjee)
Não venho a este texto com a pretensão de apresentar soluções. Muito do que à fome no planeta diz respeito, encontra-se enleado nessa complexa teia de influências a que a cobiça humana deu o nome de geoestratégia.
Não gosto de falar sobre o que não sei.
Gosto (mas só às vezes) de falar sobre o que sinto.
Hoje sinto que a púcara de caldo verde e o copo de vinho que tomei ao almoço me souberam a gula.
Hoje sinto, minha irmã que susténs no colo um filho moribundo, que a tua, que a vossa existência não é em vão. A vossa existência fez hoje de mim uma pessoa melhor.
Porque a lei que te entregou na minha mão me entregará a uma mão mais poderosa.
O teu sangue e o meu sangue mais não são do que a seiva que alimenta a árvore do céu.
E quando com os dentes morderdes uma maçã, dizei-lhe de todo o coração: as tuas sementes viverão no meu corpo, e os rebentos do teu amanhã florirão no meu coração, e o teu perfume será o meu hálito, e juntos nos congratularemos com todas as estações.
(O Profeta – Khalil Gibran)
Simbo
In the heart of the moon
Ali farka Touré & Toumani Diabaté