29 julho 2011

Ensaio para um almoço

Em tão admiráveis tempos como estes em que temos o privilégio de viver, não é sequer razoável poder ouvir que o problema da obesidade cresce imparável à escala mundial e, logo a seguir, que no corno de África, espalhadas pelo Quénia, Somália e Etiópia, existem doze milhões de pessoas a morrer de fome, devido à seca e, em alguns locais, à existência de milícias armadas que impedem a chegada de ajuda humanitária.
Quando as proezas científicas se sucedem a um ritmo imparável, quando um xeique dos Emirados Árabes Unidos manda construir um sistema de canais que inscreve o seu nome na areia, numa dimensão que torna a palavra legível a partir do espaço e, ao mesmo tempo, existem pessoas a morrer de fome e de sede, algo vai muito mal no coração dos homens.
Não me apetece discutir aqui a origem das assimetrias nem, mais facilmente, a origem do mal. Interessa-me, isso sim, falar das terríveis imagens que nos chegam diariamente. Não falo sequer dos mortos. Felizes os mortos. Abençoados todos os mortos. Falo de uma mãe de olhar vazio, perdido no nada, segurando nos braços um filho moribundo.
Quando a Humanidade continua a permitir-se deixar uma mãe com um filho nos braços perder o seu propósito na vida, quando a Humanidade autoriza tamanho paradoxo e permanece atida a respostas pontuais, então é tempo de nos começarmos a interrogar sobre as nossas prioridades, sobre o nosso rumo.
A Cruz Vermelha e outras ONG's intervêm sobre as consequências, num esforço demasiadas vezes inglório.
Eu falo em intervir sobre as causas.
Se pensarmos que esta região designada como o "corno de África" apenas se encontra separada da Arábia Saudita e do Iémen pelo Mar Vermelho e pelo golfo de Aden no oceano Índico, mais facilmente entendemos esta ironia quase doentia que coloca vis-à-vis os que têm tudo e os que nada têm.
Recordo amiúde a figura de Ali Farka Touré, musico maliano, que repetia incessantemente a frase Le miel n'est jamais bon dans une seule bouche. Vivendo de acordo com esse princípio de partilha entre os mais e os menos afortunados, Ali empregava as receitas resultantes da venda dos seus discos a nível mundial, na melhoria das condições de vida da população de Niafunké, pequena localidade de que era Maire.
Não caio no recurso de puxar a questão para argumentos de ordem religiosa. Nesta nossa contemporaneidade facilmente reconhecemos a urgência dos ensinamentos de Cristo. Ali Farka Touré era muçulmano... O que interessa isso?
Não quero, de igual modo, subtrair importância ao contributo que os diversos credos poderiam dar em matéria de tolerância e de solidariedade, ao invés de se digladiarem quase universalmente.
Açoka, célebre rei budista da Índia que renunciou a qualquer conquista militar depois de ter tomado consciência dos horrores da guerra, mandou gravar numa rocha a seguinte inscrição: "Não devemos honrar apenas a nossa religião condenando as outras, mas honrar também as outras religiões por um ou outro motivo. Agindo deste modo, ajudamos a engrandecer a nossa religião e prestamos serviço às outras. Agindo de outro modo, cavamos a sepultura da nossa religião e prejudicamos as outras." (O Rei, o Sábio e o Bobo - Shafique Keshavjee)
Não venho a este texto com a pretensão de apresentar soluções. Muito do que à fome no planeta diz respeito, encontra-se enleado nessa complexa teia de influências a que a cobiça humana deu o nome de geoestratégia.
Não gosto de falar sobre o que não sei.
Gosto (mas só às vezes) de falar sobre o que sinto.
Hoje sinto que a púcara de caldo verde e o copo de vinho que tomei ao almoço me souberam a gula.
Hoje sinto, minha irmã que susténs no colo um filho moribundo, que a tua, que a vossa existência não é em vão. A vossa existência fez hoje de mim uma pessoa melhor.

 E quando tiverdes de abater um animal, dizei-lhe de todo o coração: pelo mesmo poder que te destrói, sou igualmente destruído; e serei igualmente consumido.
Porque a lei que te entregou na minha mão me entregará a uma mão mais poderosa.
O teu sangue e o meu sangue mais não são do que a seiva que alimenta a árvore do céu.
E quando com os dentes morderdes uma maçã, dizei-lhe de todo o coração: as tuas sementes viverão no meu corpo, e os rebentos do teu amanhã florirão no meu coração, e o teu perfume será o meu hálito, e juntos nos congratularemos com todas as estações.
(O Profeta – Khalil Gibran)


Simbo
In the heart of the moon
Ali farka Touré & Toumani Diabaté

20 julho 2011

19 julho 2011

Os pássaros brancos

Quem me dera que fôssemos, amor, pássaros brancos sobre a espuma do mar!
Cansamo-nos da chama do meteoro antes de ele fugir e se extinguir;
E a chama da estrela azul do crepúsculo, suspensa sobre a orla do céu,
Despertou nos nossos corações, amor, uma tristeza que não pode morrer.


Humedecida de orvalho chega uma lassitude daqueles que sonharam o lírio e a rosa;
Oh, não sonhes com eles, amor, a chama do meteoro que passa,
Ou a chama da estrela azul que se detém suspensa na queda do orvalho,
Pois quem me dera que nos tornássemos pássaros brancos sobre a espuma errante: eu e tu!


Estou assombrado por inúmeras ilhas e muitas praias de Danaan
Onde o tempo certamente nos esqueceria e a tristeza não mais se aproximaria de nós;
Em breve estaríamos longe da rosa e do lírio e seríamos consumidos pelas chamas,
Se ao menos fôssemos pássaros brancos, amor, flutuando na espuma do mar!

The white birds
W. B. Yeats


Non ti scordar di me
Luciano Pavarotti

Uma resposta muito "particular"...

Sentei-me na cama tentando perceber as horas, atarantado,  sem saber se o telefonema que me pareceu ter acabado de receber fora real ou, apenas, confuso resquício de um sonho tardio.
São assim as investidas contra o arrumo mental. Contra arcas, baús, caixotes, caixas... caixinhas de música, em que guardamos e organizamos a nossa existência passada, numa tentativa desesperada de conferir alguma lógica de inteligibilidade e razão de ser à vida vivida, sob pena de nela nos perdermos.
São, igualmente assim, os assombros do coração. Se Deus trabalha de misteriosas maneiras, fá-lo-á através do coração?
 Uma conversa de apenas alguns minutos e toda a fortaleza tremeu até ao mais profundo dos seus alicerces.
De que serve querermos dar entendimento às coisas quando tudo se desmorona como um castelo de cartas à mínima corrente de ar, ao menor capricho da vida?
Creio serem estas as encruzilhadas que nos colocam perante o ónus do nosso livre-arbítrio. E agora, o que faço? E agora, por onde vou?
Tenho para mim que sabedoria é muito mais do que mero conhecimento, mesmo que enciclopédico. De que me adianta tentar tirar lições de tudo o que ficou do passado se isso não me servir para ser feliz hoje?
Cada vez mais me convenço de que o nosso propósito na vida é o de descobrir a fórmula mágica que nos permita ser felizes fazendo, ao mesmo tempo, felizes todos quantos nos rodeiam. Se conseguirmos atingir essa verdadeira simbiose de felicidade, seremos, então sim, seres de luz em todo o seu esplendor.
hoje é um dia a mais que o ontem mas é também um dia a menos que o amanhã.
O ontem trouxe-me dor, sofrimento e desilusão. E depois? Onde está escrito que se trate de uma inevitabilidade pela qual tenha que passar novamente? Se, como escreveu Oscar Wilde , o futuro é uma mera possibilidade, acho que vou querer ser feliz hoje!



Night and Day
Ella Fitzgerald

15 julho 2011

Mesmo com as mãos tremendo e a alma partida

Não te mereço, Maria Ermengarda!
Eu sei que não devia beber tanto vinho branco. Ainda por cima daqueles que ostentam o rótulo de "boa escolha". Eu já estou farto de saber que o critério de "boa escolha" é sinónimo de três quartos do caminho para um estado absolutamente etilizado.
Dá-me de beber, Maria Ermengarda. Mas desta feita vai ao piporro. Enche-me o copo daquele tinto que marca a pedra mármore do balcão do taberneiro assim com como tu me marcas o granito da lápide.
Não chores sobre a minha sepultura. Não é coi, cova ou última morada. É um cantinho quente, de frente para o oceano. É o aconchego de alguém a quem Deus apareceu em sonhos e disse:
- Meu filho: o teu destino é o de andar pelo mundo a espalhar amor.
Faz luto, Maria Ermengarda. Mas não desses lutos do Estado-Novo. Xailes negros e carpideiras.
Veste aquele teu vestido de lascívia negra e desce em espiral pelo varão da minha memória.
Deita-te sobre a pedra fria como se fora o meu corpo quente. Delicia-te com os laivos do final de dia feitos esgares de prazer.
Traz-me mais um copo desse tinto indecoroso. Vai célere Maria Ermengarda que se me escoa a inspiração.
Não sei como, não sei por que artes. Sei que hoje vou fazer amor contigo.
É vertiginoso o desejo, inevitável o desfecho. Ai Maria Ermengarda, que não me tenho!
Anda cá e segura-me pois entro em queda livre. Agarra-me pela lapela desta jaqueta cansada. Prega-me um beijo nos lábios e diz que, apesar de todos os meus inconfessáveis defeitos, me queres, me amas.
Andai ligeiro Maria Ermengarda que se me esvai também o tinto.
Não te mereço Maria, quanto mais a ti, que és Maria Ermengarda.
Querer-te é querer demais.
Dá-me luz, mulher. Dá-me a certeza de ser. Faz-me real, faz-me existir, caminhar sobre as águas, ser senhor de mim mesmo.


11 julho 2011

Sábado Xamã

Uma bela janta...

A ementa de hoje:
- Bife com manteiga de poejo;
- Puré de maçã;
- Azeitonas de Belmonte;
- Salada de tomate cherry com manjericão;
- Vinho tinto "Adega Cooperativa de Borba - Reserva - 1991".



04 julho 2011

Sons

Por cá diz-se mais "Longe da vista, longe do coração!". Mas a ironia da vida é tão superior a estas máximas e insiste em pôr-nos à prova.


Adolescents
Incubus
 

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