04 dezembro 2006

Circula por aí

As manifestações de militares esta semana revelaram incapacidade da democracia em modernizar-se. A proibição sucessiva de encontros ou "passeios" de militares indica que o Estado, dono do monopólio da violência e da ordem, não entendeu como mudaram as formas de debate e de luta social e corporativa, incluindo no seu seio. E como mudaram os papéis sociais dos militares e até o acesso às forças militares por força da acção, entre outros, do próprio Estado, trata-se de uma profissão especial, não de um destino de casta nem de uma obrigação, que deixou de haver. Torna-se cada vez mais difícil enquadrar a menorização democrática dos soldados e polícias. O Estado não cumpre as suas obrigações para com os militares (como estes dizem e nenhum telejornalista, incrivelmente, confrontou os governantes com essa questão) e, a seguir, não lhes permite protestar e reivindicar, empurrando-os assim para onde sempre se empurram os que não têm direitos: a ocupação do espaço público, a rua. Viu-se na televisão: os militares, pela sua formação, não se sentiram bem a fazer o "passeio" contra o Governo, mas foi o Estado que os empurrou para a rua.
É errado o Estado manter normas para proibir este tipo de acções bem como a sindicalização dos policias quando a democracia se aprofundou, as relações em rede e a informação se tornaram universais e omnipresentes, a televisão toca em tudo e o Estado-Nação se vai reduzindo à Selecção Nacional de futebol. As regras de ocupação do espaço público, tal como as defenderam esta semana o primeiro-ministro e o ministro da Defesa, vêm do final do século XIX, quando o poder burguês queria afastar da rua o povo, que não tinha direitos políticos. Criaram-se então normas rígidas para as manifestações e até para a colocação de informação nas paredes. Reuniões? De preferência em salas fechadas (fora do espaço público comum), como tiveram de fazer os militares há um ano na Casa do Alentejo. Já nessa ocasião se percebeu que as normas de proibição a militares e polícias são absurdas quando existem centenas de órgãos de informação... sem contar com a internet.
Além disso, o poder político está sempre a utilizar as forças armadas e policiais para a sua própria propaganda debaixo dos holofotes (há uma classe política que adora mostrar-se na TV perto das fardas), mas ao mesmo tempo proíbe o direito à palavra e reunião a esses mesmos servidores do Estado. Na quinta-feira assistimos a esta cena patética: o ministro da Defesa foi ao aeroporto para, pela centésima quadragésima vez, o governo fazer propaganda com a partida ou a chegada, ou a quase partida ou a quase chegada, de um contigente para Timor, Balcãs ou agora Líbano. E foi ali, nesse mesmo local, um minuto depois da sua acção de propaganda, que Severiano Teixeira condenou os militares que no mesmo dia usaram o espaço público no centro de Lisboa.
Outro governo, menos dedicado à propaganda do que este mas mais à direita, usaria a mesma prerrogativa de proibição e o mesmo uso dos holofotes à custa das fardas alinhadas. Mas é interessante ver como um governo que se diz da esquerda moderna e do choque tecnológico se rege por tópicos sociais envelhecidos e desadequados com mais de cem anos. Já estamos no século XXI: os militares e os policias devem ter mais direitos de reunião e sindicalização. Na sociedade contemporânea, serão melhores militares e melhores policias se não tiverem de recorrer à rua e à televisão para tratar dos seus assuntos corporativos. Caso contrário, só lhes sobra a rua televisionável quando se sentem injustiçados nos seus direitos. O que é bem pior para todos.

Eduardo Cintra Torres
Jornal Público, 26.11.2006

1 comentário:

Unknown disse...

Olá. Sou a Tel do Brasil e vim tazer uma abraço do outro lado do oceano!rsrsrsrsrsrsFeliz Natal!

 

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