17 fevereiro 2010

Enquanto um cigarro arde

Vem... sabe-se lá de onde.

Dentro de um casaco de malha preto, cotovelos a raiar a inexistência, saia cinzenta, coçada, adivinha-se uma mulher nova a quem a vida fez o desfavor de envelhecer precocemente.

Senta-se todos os dias no mesmo banco, à mesma hora, com a mesma displicência.

Os pombos cirandam em seu redor, receosos, expectantes.

Acende um cigarro.

No seu olhar não há lugar a tristeza pois há muito tempo nele se instalou a indiferença.

Cabisbaixa, olhos cinzentos fitando o vazio ou, quiçá, ensaiando jogadas no xadrez da saia.

No que pensará? Fará o balanço do dia? Organizará mentalmente a labuta que resta? Ou, simplesmente, descansará, pensando em nada ou em nem sequer pensar?

Xeque-mate!

O seu olhar perdido regressa de viagem.

Fita a beata suspensa de dois dedos amarelados pelo vício. Leva-a aos lábios carnudos e inspira uma última espiral de fumo consolador.

Levanta-se - abatida - e despede-se do momento, projectando no chão os restos de um instante de prazer.

Esmaga-os com um sapato já cansado, como se, acto contínuo, esmagasse a sua má-sorte.

Parte, de mão-dada com a solidão.

Vai... sabe-se lá para onde.

6 comentários:

Ponto de Interrogação disse...

Espectacular!

Continua!...

Jitos!

Unknown disse...

Fantástico, Campeão!
Muitos e sentidos parabéns.

Quero mais.

Jorge F.

Anónimo disse...

Subscrevo os comentários anteriores com uma admiração emocionada.

Isabel disse...

Outra vez!? Oh, não. Os atchins estão a dar cabo de mim. O Anónimo sou eu.

Pirolito disse...

FB

Anónimo disse...

Depois de ler, escorre uma lamechice pelos meus olhos. Sinto a solidão dessa mulher de casaco preto esgotado pelo tempo...Em estado de consciência a solidão aterroriza-nos, mas penso que, quando a vida passa a doer, amarelece não só os dedos, mas também a alma e o coração...a indiferença habita, arrasta e já não destrói...apenas contempla os cais por onde essa vida passou... Inspira, mas não já expira!Sentada num pedaço de rua qualquer..que diferença faz...para os que olham, é apenas um mulher...

Amei! Muito bom Picas do Vale!!!
Amava ver um dia publicados todos os teus textos! És um mimo que a vida nos deu!!!Beija!!!

Alana

 

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