26 outubro 2006

Homenagem

José Cardoso Pires
Escritor
02.10.25 / 26.10.98

"Há novidade?", bradavam os guardas quando chegavam ao termo do rasto levantado - à herdade iluminada, ao abrigo do pastor ou ao portão defendido pelos cães.
Nem sempre encontravam resposta pronta. Num caso ou noutro abriam-se janelas de mansinho e os cavaleiros varriam, palmo a palmo, com o foco das suas lanternas, os muros, as sombras e os portões.
"Fala a Guarda! O da casa!"
No monte dos Mais recebia-os o feitor, com um grande lobo-de-alsácia pela trela. Oferecia-lhes café e descrevia alcateias de camponeses que assaltavam as redondezas. Os guardas acenavam com a cabeça mas não adiantavam muito. Sabiam que se tratava de ganhões sem trabalho que infelizmente corriam os restolhais, procurando sustento na caça.
"Se não têm política é o menos", diziam.
"Como é o menos? Então a Venatória permite que andem a caçar no defeso? Isso não é crime, senhores guardas? Não é contra o alheio, digam-me?"
Os cavaleiros do sargento Leandro habituaram-se a estas queixas contra os malteses com fome. Ao romper da manhã iriam levantá-los aos montados, suspreendendo-os à cajadada nas moitas.
Achavam-nos em pequenos bandos, ou isolados como vultos solitários, vultos breves, esfiapados na frescura e na primeira claridade do dia.
Láparos, pássaros velhos, tudo o que viesse ao alcance desses ganhões morria. Depois saltavam à estrada e sacudiam os despojos à passagem de turistas e de viajantes:
"Amigo, compre-me esta caça".
Não esmolavam, apresentavam a sua necessidade:
"Amigo, compre-me esta caça".
Os guardas espantavam-nos só com as suas figuras, perfilados no alto dos cavalos. Compreendiam que, na cega perseguição em que se meteram, iam igualmente arrastados no mesmo vento que varre a planície e que leva por diante malteses e caça pobre. Mas, soldados da lei, viam-se diante dos lavradores inquietos, os tais que lhes serviam café e que não dormiam com o pavor das alcateias, e, acenando que sim, continuavam a cavalgada de Setembro, dia e noite através dos campos, até à pausa da ordem naquele largo de Cimadas.

O Hóspede de Job (1963)

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