José Rodrigues Miguéis
Escritor
09/12/01 - 27/10/80
Ponho-me a olhar a Avenida cá de cima, da minha água-furtada e meu refúgio, e digo-lhe, seu Apolinário: tudo isto levou uma grande volta. Antigamente vivia-se aqui como num céu aberto. Nem faz idéia. Onde isto vai, parece que não, os dias passam devagar, mas os anos vão-se depressa. A gente só dá por isso quando já não há remédio.
Foi nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas poças da chuva, travava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o verbo Amar. A Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em baixo, num boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e gritos, entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas quintas e azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo de mau gosto, outras eram pintadas a cor. Havia as "terras", lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia "reinar", e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros. As árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que sossego o desses dias agitados! Isso não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um. O mundo acabava-se ali no redondel da praça: um muro decrépito e, para além dele, era a poesia, o silêncio, o bucolismo e a Perna-de-Pau. As noites uma paz. A brisa trazia lá de cima um cheiro fresco de húmus, de estrumes, de águas e verduras. As meninas pensativas, cheias de Júlio Dinis e pescadinha frita, dedidavam pianos langues, aguitarrados, com as janelas escancaradas, ou então escutavam pelas sacadas, em roupas leves, flutuantes, a voz dos Tenórios empregados em escritórios, gemendo o fado nas ruas: "Ó pálida madrugada, já tenho saudades tuas..."
O luar encharcava a noite, entrava em cascata pelas janelas, vinha ter connosco à cama. As luzes eram raras e mortiças, de gás incandescente. Pairava no ar um resto de Cesário, e muito José Duro e amargo. Noite morta, pelas dez, passava o varino dos jornais, descalço, anelante da maratona em que vinha desde a Baixa, apregoando "A Capital" - e a voz dele tinha tal desgarramento de mundo perdido, que eu, na minha cama fria de impúbere, a seguir-lhe em mente os passos, sentia um aperto na garganta, e uma irresistível vontade de chorar. Pela meia-noite podia-se ouvir um alfinete nas pedrinhas da calçada - às vezes era um morto que tombava, a tiro... Altas horas, trambolhavam rua abaixo as carroças de bois carregadas de hortaliça, a caminho dos mercados. Os carroceiros, de gabão, dormiam sentados nos varais. Passavam tipóias derreadas de boémios e fêmeas que iam madrugar para as hortas. A Júlia Mendes morrera havia pouco...
De dia passavam funerais na lama, ou à torreira do sol, enterrando Chopin juntamente com o falecido-cujo: vinha tudo às janelas ver a carreta da Voz do Operário puxada a braço, aos trancos-barrancos nas covas do futuro pavimento, sacudindo no ar os penachos das flores da Praça da Figueira em cartuchos de papel. "Leva tantas flores!", dizia alguém, com esta nossa secreta admiração pelo luxo na morte; ou, se a carreta era branca: "É um anjinho, aquele vai pró Céu!" A Avenida era uma grande artéria por onde corriam a vida e a morte.
Léah e Outras Histórias, 1959
27 outubro 2006
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