Oito horas da manhã.
Com aquele sorriso que arma um homem precavido, observei desinteressadamente os demais cidadãos que, por preguiça ou distracção, haviam chegado depois de mim à porta da Repartição de Finanças.
Nove e dez (que é o mesmo que dizer, 9 horas, no horário fiscal).
As portas abrem-se e… romaria, escada acima… ora bem!... vejamos… balcão… IMI… IVA… é este! IRS
Mais 10 minutos de espera (que é o mesmo que dizer, atendimento imediato), e eis que surge, possante, a funcionária encarregue da matéria em apreço.
“Faxavor!”
“Bom dia para si também!” retorqui, tentando dar à expressão um tom ligeiramente irónico, de forma a não hostilizar a senhora.
“Bom dia!”, anuiu finalmente, já de sobrolho carregado.
“Venho mostrar-lhe os documentos referentes à minha Declaração de IRS. Recebi em casa um postal para vir a uma fiscalização e é melhor tratar disto o quanto antes, para poder receber o reembolso…”
“Sim Senhor… traz os papelinhos separados e as contas feitas à parte?”
“Olhe… eu trago, realmente, os papéis separados, mas não fiz contas nenhumas! Não é suposto ser aqui o Serviço a verificar isso mesmo?”
Já não bastava as Finanças servirem-se deste expediente para protelar o reembolso daquilo que é meu, ainda tinha que estar a aturar a molenga da senhora…
O que eu fui dizer…
A Sra. cravou em mim um olhar gélido e respondeu:
“Não! Nós não temos tempo para fazer isso… senão não fazemos mais nada… não conseguimos atender as pessoas”.
“Mas como?” respondi… “Não é isso que a Sra. está a fazer? A atender-me?”
Neste entretanto, um outro funcionário aproximara-se do balcão, colocando-se de atalaia. Mãos atrás das costas, bigode suástico, fato escuro, mangas coçadas (a falta que ainda faz um bom par de mangas de alpaca!), enfim, a materialização do Diabo na Terra!
Enquanto a minha Declaração era objecto de escrutínio sob a lente de contacto da funcionária (que é o mesmo que dizer, microscópio electrónico, em linguagem fiscal), mirei novamente o “Diabo” em casaca negra, e não pude deixar de me rir interiormente ao pensar no quão parecido era com um pinguim que a minha avó tinha em cima do frigorífico.
Marinava eu nestas recordações de infância quando de repente…
“AH, AH!!!”
Voltando-me para a funcionária encontrei dois olhos revirando-se nas órbitas, exultantes de alegria.
Os joelhos falharam-me e formou-se-me na boca uma película de medo.
Adivinhava já a desonra de toda a minha estirpe, a desaprovação por parte da família, a mulher vociferando por lá se ter ido o dinheiro para a nova máquina de lavar e para as férias na Fonte da Telha. O filho calando um arrazoado de impropérios em linguagem infantil, por ter que continuar mais um ano com o mesmo triciclo, já com os pneus carecas.
“Enganei-me em alguma coisa, minha Senhora?” perguntei eu com um ar estúpido, farto de saber qual seria a resposta.
“O Senhor colocou aqui no campo das despesas médicas o recibo referente a um aparelho de aerossóis, que tem 19% de IVA!”
“Eu sei minha Senhora… o meu filho, infelizmente, é asmático. O Alergologista prescreveu-lhe alguns medicamentos que carecem do aparelho. Aliás, como vê, a receita está agrafada ao recibo de farmácia em causa. Será que não podia pôr esta despesa?”
“Poder… podia! Mas não era neste campo da Declaração. Era neste… aqui mais em cima… ‘tá a ver?”
Entra então o “Diabo” em cena:
“O Senhor preencheu mal a Declaração e ponto final!”
Eu, um pouco a medo mas muito a esforço para não me “saltar o berço”, retorqui:
“Mas meu caro Senhor! Ainda se alguém pudesse alegar que eu agi de má fé, que tentei ludibriar o Estado ou que o montante a reembolsar é diferente em consequência do meu erro… eu até compreendia. Apelo ao seu bom senso!...”
“Tenho muita pena… O Senhor vai lá abaixo à Tesouraria, compra impressos novos, preenche outra vez, paga € 50 de multa por Declaração entregue fora de prazo e volta a trazer os papéis!”
“Mas eu vou ter que levar tudo para casa… a minha esposa vai ter que assinar outra vez este impresso!”
(Silêncio)
“Quando regressar amanhã tenho que ir para a fila?”
“Exactamente!”
“Bom dia e muito obrigado!”
E lá vim eu, com a pasta debaixo da axila, que é o mesmo que dizer, “com o rabo entre as pernas”, em linguagem fiscal.
Chegando a casa no final do dia encontrei a cara-metade na cozinha, em sessão de luta-livre com uns quantos alguidares de roupa lavada…
“A ver se vem o raio do dinheiro do IRS porque isto assim não é nada!”
Senti um calafrio na espinha… fui comer uma sandes de torresmos.
Com aquele sorriso que arma um homem precavido, observei desinteressadamente os demais cidadãos que, por preguiça ou distracção, haviam chegado depois de mim à porta da Repartição de Finanças.
Nove e dez (que é o mesmo que dizer, 9 horas, no horário fiscal).
As portas abrem-se e… romaria, escada acima… ora bem!... vejamos… balcão… IMI… IVA… é este! IRS
Mais 10 minutos de espera (que é o mesmo que dizer, atendimento imediato), e eis que surge, possante, a funcionária encarregue da matéria em apreço.
“Faxavor!”
“Bom dia para si também!” retorqui, tentando dar à expressão um tom ligeiramente irónico, de forma a não hostilizar a senhora.
“Bom dia!”, anuiu finalmente, já de sobrolho carregado.
“Venho mostrar-lhe os documentos referentes à minha Declaração de IRS. Recebi em casa um postal para vir a uma fiscalização e é melhor tratar disto o quanto antes, para poder receber o reembolso…”
“Sim Senhor… traz os papelinhos separados e as contas feitas à parte?”
“Olhe… eu trago, realmente, os papéis separados, mas não fiz contas nenhumas! Não é suposto ser aqui o Serviço a verificar isso mesmo?”
Já não bastava as Finanças servirem-se deste expediente para protelar o reembolso daquilo que é meu, ainda tinha que estar a aturar a molenga da senhora…
O que eu fui dizer…
A Sra. cravou em mim um olhar gélido e respondeu:
“Não! Nós não temos tempo para fazer isso… senão não fazemos mais nada… não conseguimos atender as pessoas”.
“Mas como?” respondi… “Não é isso que a Sra. está a fazer? A atender-me?”
Neste entretanto, um outro funcionário aproximara-se do balcão, colocando-se de atalaia. Mãos atrás das costas, bigode suástico, fato escuro, mangas coçadas (a falta que ainda faz um bom par de mangas de alpaca!), enfim, a materialização do Diabo na Terra!
Enquanto a minha Declaração era objecto de escrutínio sob a lente de contacto da funcionária (que é o mesmo que dizer, microscópio electrónico, em linguagem fiscal), mirei novamente o “Diabo” em casaca negra, e não pude deixar de me rir interiormente ao pensar no quão parecido era com um pinguim que a minha avó tinha em cima do frigorífico.
Marinava eu nestas recordações de infância quando de repente…
“AH, AH!!!”
Voltando-me para a funcionária encontrei dois olhos revirando-se nas órbitas, exultantes de alegria.
Os joelhos falharam-me e formou-se-me na boca uma película de medo.
Adivinhava já a desonra de toda a minha estirpe, a desaprovação por parte da família, a mulher vociferando por lá se ter ido o dinheiro para a nova máquina de lavar e para as férias na Fonte da Telha. O filho calando um arrazoado de impropérios em linguagem infantil, por ter que continuar mais um ano com o mesmo triciclo, já com os pneus carecas.
“Enganei-me em alguma coisa, minha Senhora?” perguntei eu com um ar estúpido, farto de saber qual seria a resposta.
“O Senhor colocou aqui no campo das despesas médicas o recibo referente a um aparelho de aerossóis, que tem 19% de IVA!”
“Eu sei minha Senhora… o meu filho, infelizmente, é asmático. O Alergologista prescreveu-lhe alguns medicamentos que carecem do aparelho. Aliás, como vê, a receita está agrafada ao recibo de farmácia em causa. Será que não podia pôr esta despesa?”
“Poder… podia! Mas não era neste campo da Declaração. Era neste… aqui mais em cima… ‘tá a ver?”
Entra então o “Diabo” em cena:
“O Senhor preencheu mal a Declaração e ponto final!”
Eu, um pouco a medo mas muito a esforço para não me “saltar o berço”, retorqui:
“Mas meu caro Senhor! Ainda se alguém pudesse alegar que eu agi de má fé, que tentei ludibriar o Estado ou que o montante a reembolsar é diferente em consequência do meu erro… eu até compreendia. Apelo ao seu bom senso!...”
“Tenho muita pena… O Senhor vai lá abaixo à Tesouraria, compra impressos novos, preenche outra vez, paga € 50 de multa por Declaração entregue fora de prazo e volta a trazer os papéis!”
“Mas eu vou ter que levar tudo para casa… a minha esposa vai ter que assinar outra vez este impresso!”
(Silêncio)
“Quando regressar amanhã tenho que ir para a fila?”
“Exactamente!”
“Bom dia e muito obrigado!”
E lá vim eu, com a pasta debaixo da axila, que é o mesmo que dizer, “com o rabo entre as pernas”, em linguagem fiscal.
Chegando a casa no final do dia encontrei a cara-metade na cozinha, em sessão de luta-livre com uns quantos alguidares de roupa lavada…
“A ver se vem o raio do dinheiro do IRS porque isto assim não é nada!”
Senti um calafrio na espinha… fui comer uma sandes de torresmos.
2 comentários:
O meu é que vai passar a comer sandochas de couratos se o IRS não for desbloqueado depressa...É que o meu foi retido, devido a uma dívida fiscal irrisória e por ele descomhecida cometida pelo meu marido,em 1995. Nem eu sonhava conhecê-lo, quanto mais partilhar casa, filhos e declarações de IRS...Até agora, sempre recemos o montante a que tinhamos direito, mas este ano algo está podre no podre reino das Finanças.. deste país a cair para o lado de podridão.
errata(é o que dá comentar durante o horário laboral)
onde se lê descomhecida leia-se desconhecida
recemos o montante- leia-se recebemos o montante
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