Lia eu a parte final do teu post, particularmente aquela tua alusão ao novo PS vs velho PS, quando me lembrei de um artigo de Manuel Alegre, publicado no jornal Expresso, em 2002.
Rebusquei os meus esconsos informáticos e dei com a coisa.
Depois de reler o texto (que abaixo reproduzo), só me ocorre uma visão do universo de Stephen King: O velho Socialismo morreu, vítima de múltiplas facadas nas costas... só que ainda não sabe.
No jardim das paixões extintas
É possível que eu não saiba nada de literatura, a não ser o que me ensinaram minha tia-avó Maria do Carmo Sampaio, as criadas antigas que me contavam histórias de bruxas e magias, os cegos que na feira de Águeda cantavam fados e rimances e os ciganos que por vezes me diziam coisas estranhas, como, por exemplo, Zé Mafra: «Cigano não tem casa, cigano só tem caminhos.» Isso é um poema, disse eu. Pois é, respondeu ele, é o poema dos ciganos.
É possível que de literatura eu não saiba mais do que isto. Mas talvez seja quanto baste para me convencer de que acabo de ler um dos melhores romances que nos últimos anos se escreveram: «No Jardim das Paixões Extintas», de Álvaro Guerra. E também acabo de descobrir que, além de meu amigo, ele era meu irmão. Irmão de vida, irmão de escrita, irmão de memória, no jardim das paixões extintas.
Eu tinha ouvido Mário Soares fazer uma apresentação brilhante deste livro. Talvez por não ser um crítico literário, mas um daqueles leitores que estabelecem com quem escreve a cumplicidade sem a qual a literatura não tem sentido. Ouvi-o e fui ler. Lembrei-me de Mallarmé e do livro absoluto que todo o escritor gostaria de escrever. Álvaro Guerra escreveu pelo menos o livro global, o romance de todas as paixões e de todas as guerras do século, da guerra civil de Espanha à nossa guerra colonial, passando pelas que se seguiram mesmo depois do anunciado fim da História. Livro de amor e de morte, das revoluções impossíveis e das revoluções perdidas, desde a revolução russa ao nosso 25 de Abril, com todas as utopias naufragadas no jardim das paixões extintas. Não vou contar o enredo, que é a nossa própria história, que são todas as histórias da História do nosso século. Há muito que não lia um livro assim. Tive a sensação de que ao lê-lo me estava a ler. Isso acontece poucas vezes. Gostava de dizer tudo isto a Álvaro Guerra, mas eu não sei como telefonar-lhe. Por isso escrevo.
Fixei o que ele diz: «Ultrapassadas as portas do milénio, a política abandonou a história ( até ver... ).» Talvez por isso o desconforto que tenho sentido perante o discurso político actual. Não há Portugal nem aquele «futuro do passado» de que falava Fernando Pessoa. Não há sentido futurante. Nem da política, nem do país. Não há perspectiva histórica.
Eu discordava de Cavaco Silva e combatia a sua política. Mas ele tinha política e projecto. Agora ouve-se Durão Barroso e é um vazio. Infelizmente vai-se a ler a proposta da nova Declaração de Princípios do PS e constata-se que também dela desapareceram a História e a ideologia. Desapareceu o PS. Falta, como disse Medeiros Ferreira, o código genético de um partido que nasceu no combate à ditadura e se consolidou na vitória sobre a tentativa de impor ao país um totalitarismo de sinal contrário. Falta a matriz ideológica: o PS não é uma frente sem fronteiras, é um partido de esquerda. Saber interpretar as novas realidades, começando por compreender que a grande mudança é a do próprio modo de produção, não significa a diluição ideológica nem o fim da esquerda. Há uma linha divisória, como demonstrou Bagão Félix, ao fazer na AR uma verdadeira proclamação ideológica de direita. O PS tem de acentuar a sua identidade de partido da esquerda, capaz de representar politicamente os que são atingidos pelas políticas neoliberais e uma globalização sem regras. Dar à globalização um rosto humano, regulá-la, fazer com que nela tenham voz os que por ela estão a ser excluídos, eis por onde deve começar a renovação do socialismo democrático. Criou-se a ideia de que renovar é virar à direita. Mas não. Perante as injustiças do Mundo e a ausência de alternativa, o que é preciso é inovar e reforçar a esquerda. Como disse um poeta, «depende de nós que a esperança não minta.» É preciso perceber por que é que a esperança tem mentido e por que razão, em quase toda a Europa, os socialistas ficaram aquém do que podiam e deviam. É sobretudo urgente compreender que, tal como o modelo comunista morreu historicamente, o mesmo pode acontecer ao socialismo europeu, se a sua tendência for a de se autodiluir e continuar a derivar para o centro e a direita.
A História tem de voltar à política e a ideologia também. Para que os sonhos não continuem a morrer no jardim das paixões extintas.
Manuel Alegre, Jornal Expresso, 20.07.02