06 junho 2010

Este é para ti... compadre.

Foram quantos anos? 10? Mais? Fossem 10 semanas e teria sido demasiado tempo sem nos botarmos os olhos em cima ou sem nos falarmos.
Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Há é que recuperar o tempo perdido e, como dizia Platão, não deixar crescer erva no caminho da amizade.
As recordações que temos para partilhar são mais importantes do que, à partida, o possamos julgar. O que é importante não é nem o que ficou para trás nem o que nos aguarda, mas sim aquilo que trazemos dentro de nós. E o que trazemos dentro de nós resultante dessas memórias? Um sentimento de irmandade elevado a uma potência apenas decifrável por quem fez vida no mar.
Lembras-te das fainas entre as cinco da tarde e as cinco da manhã? De como ainda miúdos saltámos para dentro do barco e reclamámos o nosso lugar ao remo? E por que raio haviam os Caparicanos de ser mais do que a seita de Almada?
Sabes amigo, penso muitas vezes nas famosas sandes de dez fatias de fiambre dentro de um pão de Mafra; o safa-pão que na ida carregava as latas de meio-litro de cerveja e na volta trazia o esforçado quinhão de peixe que entregávamos em casa com orgulho.
Recordo como as nossas mãos passaram de bolha a calo sem qualquer queixume ou indício de fraqueza; os temporais em que, com respeito pelo mar mas sem qualquer consideração pelas nossas vidas, saíamos irresponsavelmente para uma tormenta desfeita, sem ajuda de motores fora-de-borda, remando para além do limite do razoável e de como, na arribada, o "velho" Venceslau, arrais da Arte, passava a corda à malagueta para que um qualquer andaço de água mais traiçoeiro não virasse o saveiro meia-lua sobre nós.
Tenho dias, durante as minhas caminhadas pela praia, em que julgo ouvir o rezingão Venceslau a zurzir na companha, sobretudo quando era preciso encalhar o barco no cimo das dunas e havia uma barreira imensa de areia para vencer. No final da faina já nenhum de nós podia com uma gata pelo rabo e todos fugiam ao derradeiro esforço que era carregar em ombros aquele adamastor de madeira. Ainda tenho as marcas psicológicas das recoveiras de eucalipto cravadas nos ombros. E era então que o velho "Lau" vociferava tonitroante: Andarem cá ao barco seus langões! Se eu tivesse a vossa idade comia isto tudo à dentada.
E quando a pesca era fraca e sobravam apenas umas cavalas para o quinhão? A companha mostrava o seu ar de desagrado e o velho respondia: O que foi? Estão agoniados de tanto peixe? Amanhã damos dois lanços pelas Terras da Costa. Pode ser que se apanhe alguma vaca e assim já podem levar bifinhos do lombo para casa.
Sabes do que sinto mais saudade? Das noites de Lua Nova em que saíamos para o mar a aguardar hora para dar o lanço. Largava-se o ferro e ficávamos deitados sobre os bancos ou sobre a rede, mãos cruzadas sob a cabeça, contemplando um céu negro absolutamente pejado de estrelas. Ninguém abria a boca para dizer o que fosse. Eram horas em que homens, barco, mar e céu se fundiam num todo em que qualquer outro som que não o das vagas acariciando o casco seria conspurcar uma sagrada comunhão.
Tenho também, confesso-te, uma vaidade tremenda ao lembrar de quando, já na Faculdade, os banhistas se chegavam ao barco enquanto nos preparávamos para mais um lanço e o arrais dizia inchado para as pessoas: Estão a ver este que está aqui a aparelhar a rede? É quase Doutor mas anda aqui ao mar comigo. E mais tarde, já na Armada, quando a Bertina me disse em segredo que o Venceslau saía para o mar com uma fotografia minha, de uniforme, dentro do bolso da camisa de flanela, para ele poder dizer, no caso de lhe aparecer a Polícia Marítima, que tinha um afilhado que era Oficial de Marinha.
É assim a vida... Fomos marcados e marcámos. Aprendemos partilhas e silêncios. Crescemos...
Um grande abraço, compadre.
Não vou mais sentir saudades tuas porque não te vou perder outra vez sob a linha do horizonte.

8 comentários:

Ponto de Interrogação disse...

MARAVILHOSO!

Obrigada pela partilha!

Beijocas!

Pirolito disse...

Laivos de uma juventude salpicada pela maresia...

Anónimo disse...

LER TEU BLOG NO FIN DE SEMANA É INICIRA A SEMANA COM MAIS DISPOSIÇÃO E NÃO PENSAR BOLAS!! MAIS UMA 2ª FEIRA...
BOA SEMANA
GY. BJKAS..

Nós!! disse...

Nem sei o que te dizer apenas resta-me agradeçer estas simples , singelas e verdadeiras palavras , que vindo de alguêm como um amigo é apenas gratificante , para uma pessoa como eu ter dividido contigo estas historias, e hoje recordar com saudade estas e outras centenas de historias.
Grande abraço e obrigado!!!

Unknown disse...

Uma bonita forma de partilhares algumas das tuas memórias de juventude. Bjo

Pirolito disse...

Tenho que aproveitar estes laivos de lucidez enquanto não fico senil... o que já não deve vir longe...
Obrigado pelos vossos comentários!

Anónimo disse...

Magnifico.
Um beijinho muito grande

PS: Prometido

Anónimo disse...

Mano, é por estas... e por tantas outras que eu te AMO tanto!

Um grande Xi-Coração!

 

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